O enterro da Paróquia












Ouvi esta "história" há já alguns anos (26.03.2014), num encontro de agentes pastorais das paróquias de Arroios, Constantim e Mateus, e contada, em breves traços, pelo Frei José Dias Lima, franciscano.

Deixo aqui a minha versão (revista, adaptada e muito, muito aumentada).

Um padre foi nomeado, pelo Bispo da Diocese, para uma nova paróquia, distante daquela onde tinha estado durante os últimos anos.

Quando lá chegou, logo verificou, com muito pesar, que os habitantes daquela localidade pouco ou nada queriam saber da igreja e muito menos da Igreja, de tal modo que o edifício estava num estado muito degradado, com vidros partidos nas janelas, faltavam telhas no telhado, paredes a necessitar de uma boa pintura, soalho a precisar de uma valente barrela, etc.

Quando à Igreja local, também não estava de muito boa saúde: não havia sacristão para abrir as portas ou tocar o sino, nem uma única zeladora que varresse o chão, limpasse o pó, colocasse flores nos altares ou lavasse as toalhas e os paramentos litúrgicos.

Ninguém estava disponível para orientar as sessões de catequese das inúmeras crianças e adolescentes que moravam na localidade, e que, nos seus tempos livres, faziam do adro um autêntico parque de diversões, nem para proclamar as leituras ou cantar durante as celebrações.

Ninguém para acolitar o padre durante a celebração da Eucaristia, nem mesmo ministros extraordinários para levar a Sagrada Comunhão aos doentes que estavam retidos em casa.

Até os membros da comissão fabriqueira, mesmo depois de terem aceitado fazer parte dela – embora a custo -, nunca apareciam às respetivas reuniões, deixando o padre, enquanto presidente da mesma, a falar literalmente sozinho.

O padre João tinha de fazer tudo o que era necessário para manter a paróquia a funcionar, e, por mais que fizesse e tentasse encontrar colaboradores, todos se escusavam, apresentando as mais variadas e esfarrapadas desculpas.

A situação era verdadeiramente insustentável, pelo que se tornava necessário encontrar, e rapidamente, uma solução.

Uma noite, antes de se deitar, o padre João olhou para o crucifixo colocado na sua mesinha de cabeceira, como fazia todas as noites, e, quando se preparava para ajoelhar e conversar um pouco com Deus, antes de rezar a Oração de Completas, pareceu-lhe que Jesus sorriu e lhe piscou o olho.

Naquele momento, pensou tratar-se de uma ilusão de ótica, mas…

Depois de cumprir as suas obrigações, particularmente a de rezar por todos os seus paroquianos, sentou-se na cama, pegou no crucifixo com ambas as mãos, e ficou a olhar para Jesus Crucificado, tentando vislumbrar um novo sorriso ou um novo “piscar de olhos” vindos daquela imagem de madeira, tão antiga, ou mais, quanto a paróquia. Durante largos minutos, nada!

Continuou a olhar e, enquanto olhava com desvelo para a imagem, lá começou a martelar-lhe no pensamento a lembrança das dificuldades que estava a passar para tentar encontrar, pelo menos, um ou dois colaboradores que o ajudassem nas tarefas pastorais, e começou a tomar consciência de que ainda não tinha pedido, verdadeiramente, ajuda Àquele que tudo pode e que nunca nos abandona, particularmente nos momentos mais difíceis da nossa vida.

Então, começou a falar com Ele… e escancarou as portas do seu coração, cheio de tristeza pelo estado lastimável em que se encontrava a paróquia, e de alguma angústia por não estar a ser capaz de cumprir com a missão que o seu Bispo lhe tinha confiado.

Quando terminou, Jesus piscou-lhe o olho, sorriu-lhe de novo e sussurrou-lhe umas quantas palavras que qualquer outra pessoa, eventualmente presente naquele quarto, era incapaz de ouvir, pois apenas encontraram eco no coração do padre João.

No final, o padre, após respirar fundo, como se lhe tivessem tirado um enorme peso das costas, e sentindo-se aliviado, apenas disse:

- Obrigado, meu Senhor e meu Deus!

Depois de ter colocado o crucifixo na mesinha de cabeira, deitou-se e dormiu o sono dos justos, como há muito não conseguia fazer.

No dia seguinte era Domingo, e o padre João, ansioso, dirigiu-se apressadamente para a igreja, a fim de presidir à celebração da missa da manhã.

Não ia triste e amargurado, como em muitas das outras vezes, quando sabia que ia encontrar, sentadas nos inúmeros bancos da igreja, meia dúzia de idosas, a rezar o terço, e que continuavam a fazê-lo mesmo durante a celebração da Santa Missa.

Desta vez era diferente. Ai se era!

Antes do final da homilia, tossiu algumas vezes, como que para aclarar a voz (mas o que pretendia era chamar a atenção das presentes), e disse do modo mais solene que conseguiu:

- Minhas irmãs, quero comunicar-vos que, logo à tarde, em vez da missa das 18 horas, vou celebrar uma “missa de corpo presente”, a que se seguirá o “enterro” desta paróquia.

E continuou com a celebração da missa, como se o que acabara de dizer fosse a coisa mais natural do mundo.

Algumas das presentes não perceberam logo à primeira, e perguntaram a quem estava mais próximo o que é que o padre tinha dito. Mas como nenhuma das presentes percebera bem o “anúncio” que tinha sido feito, umas delas, mais afoita, no final da missa, foi ter com o padre à sacristia e perguntou-lhe o que é que ele quis dizer com aquelas palavras.

O padre só respondeu:

- Venham e verão!

Saindo rapidamente da sacristia, a Ti Maria foi contar às idosas presentes o que o padre lhe tinha acabado de confirmar: em lugar da habitual missa das seis, o padre ia celebrar uma “missa de corpo presente” e, logo de seguida, ia fazer o “enterro da paróquia”.

Como folhas secas levadas pelo vento, as senhoras foram apressadamente contar o que tinham acabado de ouvir aos seus familiares e vizinhos, aproveitando para informar quem encontravam pelo caminho: a Mariazinha da Farmácia Remédios, o Zé Alberto do Café Império, a Milú do Cabeleireiro Mizé, o António do Talho Pimpão, a Anita da Mercearia Central, o Carlos da Garagem Mabor, e muitos mais comerciantes, os quais, apesar de ser Domingo, estavam de “portas abertas” para atender os fregueses.

Rapidamente a notícia do “enterro da paróquia” chegou aos ouvidos de todos os habitantes, de tal modo que, ainda as seis horas da tarde vinham longe, já a igreja estava apinhada de gente batizada e não batizada, de crentes e de não crentes, de católicos, de agnósticos e de ateus, num número tal que transbordava para o adro.

Chegada a hora marcada pelo padre João, chegou à porta da igreja o cangalheiro da vila, no seu veículo, transportando uma urna fechada.

Parou e abriu a porta traseira da viatura. Olhando para os curiosos que se aproximaram, pediu-lhes:

- Não se importam de dar aqui uma ajudinha. Preciso de quatro homens fortes.

Sem que houvesse necessidade de repetir, pois a curiosidade era imensa, e não havia tempo a perder para que se fizesse o “enterro da paróquia”, quatro pares de mãos agarraram na urna, puseram-na aos ombros e transportaram-na até junto do altar, onde a colocaram.

O padre João presidiu à celebração da missa de “corpo presente” e, no final, dirigiu-se a todos os que ali estavam, dizendo:

- Meus irmãos e minhas irmãs. Antes de mais quero agradecer a presença de todos neste momento em que vamos proceder ao “enterro da paróquia”. Mas, antes de levarmos o caixão até ao cemitério, quero convidar-vos a todos, sem excepção, para, individualmente, vos despedirdes da falecida. Façam uma fila ao centro e aproximem-se da urna, calmamente.

O povo presente logo se apressou a fazer uma fila no centro da nave da igreja, e todos começaram a caminhar em direcção ao esquife.

O padre abriu o ataúde e… quando o primeiro lá chegou, deu um grito e um salto enorme, afastando-se rapidamente do caixão, benzendo-se repetidamente. E o mesmo aconteceu com todos os outros.

Qual teria sido a razão de tal comportamento?

Iluminado por Deus, o padre João tinha colocado dentro da urna um enorme espelho, de tal modo que, quando alguém olhava lá para dentro, o que via era a sua própria imagem refletida no espelho.

Efetivamente, a Paróquia não é uma entidade abstrata, mas é o conjunto das pessoas que, vivendo numa mesma área geográfica, professam, testemunham e celebram a mesma fé em Jesus Cristo.

A Igreja não é o edifício onde se pode rezar e celebrar os sacramentos, mas são todos os batizados que foram chamados por Deus à santidade, e que, por isso, constituem o Corpo de Jesus. A Igreja é o Corpo Místico de Cristo, do qual Ele é a Cabeça. (1Cor 12,27; Col 1,18; Ef 1, 22-23; cf. Lumen gentium, 7).

Dito de uma forma simples e direta: o “enterro” de uma paróquia não é mais nem menos do que o “enterro” de cada um que vive nessa mesma paróquia, pois se uma paróquia está morta, é porque a vida espiritual de cada um dos seus habitantes batizados já morreu há muito.

Para terminar. Qual tem sido o papel de cada um de nós na vida quotidiana da nossa paróquia? Ou será que temos estado a dar um grande contributo para o “enterro” da nossa paróquia?

José Pinto

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